Acariciei teus sedosos cabelos brancos, que mais pareciam um chumaço de algodão, senti seu cheiro de cigarro e tua voz soou vagarosa e nitidamente em meus ouvidos. Foi tão real que custo acreditar que foi apenas um sonho, um sonho de Páscoa.
Tenho sonhos muito reais, onde sinto cheiros e gostos, sinto o toque, frio ou calor e outras vezes nem me lembro de se sonhei. Nesse feriado de Páscoa sonhei com meu avô paterno, carinhosamente chamado de Pai Véi. Faz 15 anos que ele faleceu, mesmo assim as lembranças estão bem acessas em minha cabeça. Ele foi um pai amoroso e um avô formidável, mas principalmente, ele foi o melhor marido do mundo.
Não cheguei a conhecer minha avó, a Mãe Véia, mas a história de amor desse casal era tão linda e forte que durou até mesmo após a morte dela.
Em mil novecentos e bolinha, nossa região sofria com uma terrível seca, gado, planta e gente morrendo. Meu bisavô tomava conta de uma fazenda, chamada Porteiras, que pertencia à Sertaneja, com as dificuldades daquela época, meu bisavô decidiu ir embora com a família para tentar a sorte em outro local e o destino era o Mato Grosso, não sei o porquê da escolha, só sei que arrumaram os pertences e partiram... menos meu avô.
O que fez meu avô Joaquim ficar na Bahia foi uma morena, baixinha com nome de flor, Margarida. Meu avô era alto, forte, pele clara e estava apaixonado e por ela se separou de toda a família. Ele ficou sozinho na fazenda, enquanto pai, mãe e irmãos foram embora para sempre, nunca mais se viram, com exceção de uma irmã dele que muitos anos depois voltou à Bahia para visita-lo.
Margarida era filha de mãe solteira (d. Maria que trabalhava no vapor Saldanha Marinho), minha vó e a irmã Adélia foram criadas e educadas entre Barreiras e Juazeiro, minha avó aprendeu corte-costura, bordados, prendas do lar e mais... tocar violão e cavaquinho, tinha uma bela voz.
Ela e meu avô se casaram e tiveram cinco filhos: Eunice (tia Nicinha), Rosa, Joaquim (meu pai), Letice (Lé) e Daliá (titia). Os três mais velhos davam muito trabalho aos pais, eram extremamente sapecas. Minha avó bem que tentou dá a melhor educação a todos, porém meu pai, por ser o único filho homem, era o protegido de meu avô e esse ficou ‘estragado’, cheio de vontades, um reizinho.
Quem conheceu minha avó Margarida, conta que ela era uma mulher muito séria, detestava coisas erradas. Um escritor e amigo da família, seu Sebastião Lopes, revela que ela era uma mulher muito elegante e bondosa, “Dona Margarida era uma fidalga, foi a mulher mais requintada que eu já conheci nessa vida, era de se admirar que morando numa fazenda e depois num povoado, que ela mantivesse hábitos tão elegantes. Eu e meu irmão fomos hóspedes na residência de seu Joaquim das Porteiras e de d. Margarida, éramos dois pobres retirantes e eles nos tratavam como pessoas importantes, nunca me esquecerei da generosidade deles dois não só com a gente, como também a tantos outros que tiveram a oportunidade de conviver com eles”.
Mas nem tudo era perfeito, Margarida tinha saúde muito frágil, era asmática e tinha um sério problema no coração. Às vezes passava temporadas sem sair do quarto e meu avô, muito prestimoso, cuidava muito bem dela, com muito amor e zelo.
O tempo passou, os filhos endiabrados cresceram, casaram-se e começaram a ter filhos. Meu pai e minhas tias tinham o hábito de todos os dias pela manhã irem tomar café na casa de meus avós, a mesa sempre farta e as conversas sobre os mais variados assuntos, era um dos momentos preferidos dos meus avós, que adoravam a família reunida.
Com o passar dos anos a saúde de minha avó piorou muito, meu avô havia se desfeito de muitos bens em busca da cura. Uma noite, retornando de Brasília após novas consultas, minha avó recostada no ombro de meu avô, desfaleceu, não tinha adormecido, não tinha desmaiado, ela havia morrido em seus braços. Pai Véi, chorou, chorou muito, sua dor era insuportável.
Quando minha avó faleceu, minha mãe estava grávida de oito meses da quarta filha. Minha irmã ao nascer, meu pai a batizou com o nome de minhas duas avós, Margarida e Maria. Dizem que minha irmã se parece com nossa Mãe Véia, nem tanto fisicamente, mas sim moralmente. Seis meses após a morte de minha avó, outra dolorosa perda para a família, a terceira filha Rosa morre do mesmo mal que afligia minha avó, o coração.
Pai Véi, nunca se casou novamente, guardou o luto por 25 anos, até teve uns namoricos com duas senhoras, mas nunca levou-as para morar com ele. Morou sozinho por longos anos, quando um neto se casou e não tinha casa própria e foi morar com ele. Pai Véi já estava bem idoso, cego de um olho e mesmo assim, gostava de fazer sua a própria comida, cuidava de suas galinhas e de algumas plantas.
Certa vez ele veio passar uns dias em nossa casa e viu da janela a roseira da minha mãe toda florida, daí ele pediu uma muda, “Zilda, faz uma muda pra mim dessa rosa, pois quando eu morrer é pra enfeitar meu caixão com as rosas que eu vou cultivar”. Minha mãe obedeceu ao sogro e depois enviou uma pequena muda. Tempos depois, meu Pai Véi aos 87 anos faleceu, foi uma enorme tristeza para todos nós. Da pequena muda, brotou uma roseira maior do que a da minha mãe, cheinha de rosas que enfeitaram o caixão do melhor e mais destemido vaqueiro dessa região, segundo relatos dos amigos e do meu outro avô.
Lembro-me tanto dele sentado ao final do dia, na porta da casa fazendo o cigarro num demorado ritual, para depois soltar a fumaça fitando o horizonte e lembrando-se de Mãe Véia, das labutas, dos filhos e netos. Sempre que eu ia visitá-lo ele me dava um longo abraço, depois me abençoava, enfiava a mão no bolso e me dava um trocado, depois perguntava primeiro por Margarida, minha irmã, depois “E seu Quim, como está? Tá montado na ema?”, Pai Véi chamava o filho que herdou seu nome e profissão de seu Quim, e a expressão montado na ema, era querendo saber se ele estava bebendo, pois pai foi alcóolatra por quase 40 anos.
Ele ficaria muito feliz se soubesse que há cinco anos meu pai não bebe e que já seria tataravô. Ele dizia que os anos mais felizes da vida dele foram ao lado de minha avó e que era duro demais viver sem ela, mas amava a Deus e se conformava com seu destino, “Eu sou o chefe dessa família, preciso acompanhar a vida dos meus filhos, dos netos e dos bisnetos que chegaram, mas a falta de Margarida é muito grande”. Na casa de meu avô existia uma foto dele com minha avó na sala de visitas, eu gostava de olhar a foto deles e ficar perguntando meu avô sobre ela, e ele falava dela sempre com emoção e os olhos marejados, ele adorava falar sobre ela.
O apelido Pai Véi e Mãe Véia veio da primeira neta deles, Vilani (filha de tia Nicinha), ela foi criada por eles e todos os outros netos aprenderam com Vilani a chamá-los dessa forma.
Joaquim e Margarida estão enterrados no túmulo da família lá em São José do Rio Grande-BA, onde viveram por toda a vida, amando e respeitando um ao outro, nunca ouvi ninguém contar de nenhuma briga ou pequena discussão entre eles, o que prevaleceu foi o grande amor que os uniu e que marcou nossas lembranças.
2 comentários:
Querida Lu Roque, que coisa mais linda! Mal posso enxergar o teclado, olhos mais que marejados... emocionante a história, emocionante sua forma natural de contar, emocionante sua sensibilidade, seu jeito especial de enxergar, de perceber quão valioso foi este amor e toda a herança que deixou.
Parabéns pelos seus sonhos lúcidos, próprios de pessoas especiais, parabéns pela sua visão amorosa deste mundo e, principalmente, obrigada por me fazer refletir e tocar meu coração, revelando-nos aqui a imensa beleza do seu!
Nossa Inês que linda as suas palavras, sinceramente fiquei muito tocada, obrigada pela sensibilidade e sua generosidade, bjs
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